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sábado, 30 de janeiro de 2021

LEITURA FRAGMENTO DA OBRA O QUINZE DE RACHEL DE QUEIROZ

 

O QUINZE de RACHEL DE QUEIROZ (fragmento)

    Debaixo de um juazeiro grande, todo um bando de retirantes se arranchara: uma velha, dois homens, uma mulher nova, algumas crianças.
    O sol, no céu, marcava onze horas. Quando Chico Bento, com seu grupo, apontou na estrada, os homens esfolavam uma rês e as mulheres faziam ferver uma lata de querosene cheia de água, abanando o fogo com um chapéu de palha muito sujo e remendado.
    Em toda a extensão da vista, nenhuma outra árvore surgia. Só aquele juazeiro, devastado e espinhento, verdejava a copa hospitaleira na desolação cor de cinza da paisagem.
    Cordulina ofegava de cansaço. A Limpa-Trilho gania e parava, lambendo os pés queimados.
    Os meninos choramingavam, pedindo de comer.
    E Chico Bento pensava: – Por que, em menino, a inquietação, o calor, o cansaço, sempre aparecem com o nome de fome?
    – Mãe, eu queria comer... me dá um taquinho de rapadura!
    – Ai, pedra do diabo! Topada desgraçada! Papai, vamos comer mais aquele povo, debaixo desse pé de pau?
    O juazeiro era um só. O vaqueiro também se achou no direito de tomar seu quinhão de abrigo e de frescura.
    E depois de arriar as trouxas e aliviar a burra, reparou nos vizinhos. A rês estava quase esfolada. A cabeça inchada não tinha chifres. Só dois ocos podres, mal cheirosos, donde escorria uma água purulenta.
    Encostando-se ao tronco, Chico Bento se dirigiu aos esfoladores:
    – De que morreu essa novilha, se não é da minha conta?
Um dos homens levantou-se, com a faca escorrendo sangue, as mãos tintas de vermelho, um fartum sangrento envolvendo-o todo:
    – De mal dos chifres. Nós já achamos ela doente. E vamos aproveitar, mode não dar para os urubus.
    Chico Bento cuspiu longe, enojado:
    – E vosmecês têm coragem de comer isso? Me ripuna só de olhar...
    O outro explicou calmamente:
    – Faz dois dias que a gente não bota um de-comer de panela na boca...
    Chico Bento alargou os braços, num grande gesto de fraternidade:
    – Por isso não! Aí nas cargas eu tenho um resto de criação salgada que dá para nós. Rebolem essa porqueira pros urubus, que já é deles! Eu vou lá deixar um cristão comer bicho podre de mal, tenho um bocado no meu surrão!
    Realmente a vaca já fedia, por causa da doença.
    Toda descarnada, formando um grande bloco sangrento, era uma festa para os urubus vê-la, lá de cima, lá da frieza mesquinha das nuvens. E para comemorar o achado executavam no ar grandes rondas festivas, negrejando as asas pretas em espirais descendentes.


Fonte: O quinze. Rachel de Queiroz.

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