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sábado, 19 de abril de 2025

LEITURA E INTERPRETAÇÃO DE TEXTO - GÊNERO CONTO - ENSINO MÉDIO COM GABARITO

 
A História de Uma Hora
Kate Chopin (1894)

Sabendo que Mrs. Mallard sofria de problema cardíaco, um grande cuidado foi tomado para avisá-la da forma mais cautelosa possível sobre a morte de seu marido.

Foi sua irmã Josephine quem lhe contou com frases incompletas; sinais omitidos que iam se revelando aos poucos. Richard, o melhor amigo de seu marido, estava lá também, perto dela. Era ele quem estava na redação do jornal quando a notícia do desastre da estrada de ferro foi recebida, com o nome de Brently Mallard, descrito na lista de “mortos”. Arranjou um tempo para se certificar da fatalidade por um segundo telegrama e se apressou para impedir que um amigo menos cuidadoso, menos carinhoso comunicasse a triste notícia.

Ela não ouviu o relato que outras mulheres ouviram, pois se sentia paralisada, incapaz de aceitar o fato ocorrido. Ela chorou subitamente nos braços de sua irmã em sôfrego abandono. Quando sua dor se esgotou, foi para seu quarto sozinha. Não queria que ninguém a acompanhasse.

Ali permaneceu, olhando pela janela, numa confortável poltrona e nela se afundou com sinal de extrema exaustão que percorria seu corpo e que parecia atingir sua alma.

Ela conseguia perceber na pracinha localizada de frente para sua casa, o topo das árvores que estavam em consonância com a nova vida da primavera. Um hálito delicioso de chuva pairava no ar. Na rua debaixo, um ambulante estava comercializando seus artefatos. As notas longínquas de uma música que alguém cantava, chegaram até ela levemente e incontáveis pardais voavam sobre o telhado.  Havia traços de céu azul que apareciam aqui e ali através de nuvens que se encontravam e se entrelaçavam umas sobre as outras no lado leste,  vindo de encontro à sua janela.

Ela sentou com sua cabeça inclinada na almofada da poltrona, sem emoção, com exceção de quando um soluço correu por sua garganta e a sacudiu, como uma criança que chorou para dormir e que continua soluçando ao adormecer.

Ela era jovem, com um semblante íntegro e calmo, cujas linhas de expressões denotavam repressão e uma certa força. Mas neste momento havia uma névoa em seus olhos. Seu olhar vagava como as nuvens do céu.  Não era um olhar de reflexão, ao contrário indicava a suspensão do pensamento.

Havia algo de que se aproximava e que ela aguardava, temerosamente. O que seria aquilo? Ela não sabia; era muito repentino e elusivo para nomeá-lo. Mas ela o sentia vindo do céu, atingindo-a e estremecendo-a , através dos sons,  odores e cores que planavam  no ar.

Neste momento seu peito se abriu e se sentiu conturbado. Estava começando a reconhecer o que se aproximava para dominá-la, e ela está lutando com todas suas forças tão impotente quanto suas lânguidas mãos. Rendendo-se, um sussurro escapou de seus lábios partidos e delicados. Ela repetia várias e várias vezes: “liberdade, liberdade, liberdade!” Um vago e aterrorizante olhar brotava de seus olhos. Eles permaneceram vivos e brilhantes. Seus pulsos pulsavam atemorizados, seu sangue percorria quente e relaxava todo seu corpo.

Não parava de perguntar a si mesma se não era uma arrebatadora euforia que a invadia. Uma clara e forte percepção a ajudava a desconsiderar aquele fato como comum. Ela sabia que choraria novamente quando olhasse suas mãos gentis e carinhosas definhando-se em morte. Uma face que nunca havia olhado com amor, paralisada, sem cor e morta. Mas ela via naquele amargo momento longos anos que estavam por vir e que pertenceriam a ela de forma absoluta. E então, abriu seus braços e os ergueu em direção a eles em forma de boas-vindas.

Não haveria ninguém por quem viver durante aqueles próximos anos, viveria apenas para si. Não haveria nenhuma vontade poderosa que a fizesse mudar de ideia na sua persistência em pensar que o homem e a mulher acreditam no direito de impor sua vontade um sobre o outro. Uma intenção amigável ou cruel feita de atitude não pareceria menos criminosa do que aquele momento de iluminação em que se encontrava.

E ainda ela o amou algumas vezes. Outras não. O que importaria! O que poderia amar? Um mistério insolúvel, contar com a posse da sua autoconfiança naquele momento, reconhecia como o impulso mais forte de seu ser.

“Livre! Corpo e alma livres.” Continuou sussurrando.

Josephine estava ajoelhada atrás da porta, que estava fechada, com seus lábios na  fechadura implorando para ser ouvida.

“Louise, abra a porta! Implorou: “Abra a porta. Você ficará doente. O que está fazendo Louise? Pelo amor de Deus abra a porta”.

“Vá embora. Não estou ficando doente”. Não; ela estava bebendo o elixir da vida através do ar que vinha pela janela.

Sua imaginação corria em desalinho a respeito daqueles dias que iriam chegar. Dias de primavera, dias de verão e todos os demais que seriam apenas seus. Fez uma pequena prece para que a vida fosse longa. Ainda ontem ela pensava estremecida que a vida  haveria de  ser  longa.

Levantou-se de súbito e abriu a porta para atender aos apelos de sua irmã. Havia um cálido triunfo em seu olhar, caminhou inconscientemente como se fosse a deusa da vitória, agarrou-se à cintura de Josephine e então desceram as escadas. Richard as aguardava no piso debaixo.

Alguém estava abrindo a porta da frente. Era Brent Mallard! Calmo e um tanto sujo pelo trabalho, carregava uma sacola e um guarda- chuva. Ele estava muito longe do lugar onde o acidente havia acontecido e nem mesmo tinha tomado conhecimento dele! Ficou paralisado e atônito com o choro convulsivo de Josephine e com a forte emoção de Richard ao vê-lo de frente à sua esposa.

Quando os médicos chegaram disseram que Louise havia falecido de ataque do coração causado pela forte emoção que a acometera.


Fonte em Inglês: http://www.vcu.edu/engweb/webtexts/hour/

ATIVIDADES

1. Qual das seguintes opções descreve melhor a causa inicial da preocupação com Mrs. Mallard no conto?

(A) Ela sofria de uma doença mental.
(B) Ela estava de luto pela perda de um familiar.
(C) Ela tinha um problema cardíaco.
(D) Ela estava presa em um casamento infeliz.
(E) Ela havia recebido más notícias sobre seus investimentos.

2. Quem deu a notícia da morte de Brently Mallard a Louise?

(A) Seu marido, Brently.
(B) Um amigo do jornal.
(C) O médico da família.
(D) Sua irmã, Josephine.
(E) Um vizinho.

3. Qual a emoção que Louise NÃO sentiu após a notícia da morte de seu marido?

(A) Raiva.
(B) Tristeza.
(C) Alívio.
(D) Liberdade.
(E) Euforia.

4. O que acontece quando Brently Mallard retorna?

(A) Louise o abraça calorosamente.
(B) Louise desmaia de felicidade.
(C) Louise tem um ataque cardíaco e morre.
(D) Louise foge com ele.
(E) Josephine fica com raiva do marido.

5. Qual dos seguintes temas é CENTRAL para o conto?

(A) A importância da família.
(B) Os perigos das notícias falsas.
(C) A alegria do reencontro.
(D) O luto e a perda.
(E) A opressão das mulheres no casamento.







GABARITO
1: C
2: D
3: A
4: C
5: E


sábado, 9 de dezembro de 2023

LEITURA E INTERPRETAÇÃO DE TEXTO - CONTO DE AMOR - FUNDAMENTAL II

 

COM CERTEZA TENHO AMOR

Um conto escrito por Marina Colasanti


Moça tão resguardada por seus pais não deveria ter ido à feira. Nem foi, embora muito o desejasse. Mas porque o desejava, convenceu a ama que a acompanhava a tomar uma rua em vez de outra para ir à igreja, e a rua que tomaram passava tão perto da feira que seus sons a percorriam como água e as cores todas da feira pareciam espelhar-se nas paredes claras. Foi dessa rua, olhando através do véu que lhe cobria metade do rosto, que a moça viu os saltimbancos em suas acrobacias.

E foi nessa rua, recortada como uma silhueta em suas roupas escuras, o rosto meio coberto por um véu, que o mais jovem dos saltimbancos, atrasado a caminho da feira, a viu.

Era o mais jovem, era o mais forte, era o mais valente entre os onze irmãos. A partir daquele encontro porém, uma fraqueza que não conhecia deslizou para dentro do seu peito. À noite suspirava como se doente.

- Que tens? - perguntaram-lhe os irmãos.

- Não sei - respondeu. E era verdade. Sabia apenas que a moça velada aparecia nos seus sonhos, e que parecia sonhar mesmo acordado porque mesmo acordado a tinha diante dos olhos.

Àquela rua a moça não voltou mais. Mas ele a procurou em todas as outras ruas da cidade até vê-la passar, esperou diante da igreja até vê-la entrar, acompanhou-a ao longe até vê-la chegar em casa.

Agora sorria, cantava, embora de repente largasse a comida no prato porque nada mais lhe passava na garganta.

- Que tens? - perguntaram-lhe os irmãos.

- Acho, não sei... - respondeu ele abaixando a cabeça sobre o seu rubor - creio... que tenho amor.

Na sua casa, a moça também sorria e cantava, largava de repente a comida no prato e se punha a chorar.

- Tenho... sim... com certeza tenho amor - respondeu à ama que lhe perguntou o que tinha.

Mas nem a ama se alegrou, nem se alegraram os dez irmãos. Pois como alegrar-se com um amor que não podia ser?

De fato, tanto riso tanto choro acabaram chamando a atenção do pai da moça que, vigilante e sem precisar perguntar, trancou-a no quarto mais alto da sua alta casa. Não era com um saltimbanco que havia de casar a filha criada com tanto esmero.

Mas era com o saltimbanco que ela queria se casar.

E o saltimbanco, ajudado por seus dez irmãos, começou a se preparar para chegar até ela.

Afinal uma noite, lua nenhuma que os denunciasse, encaminharam-se os onze para a casa da moça. Seus pés calçados de feltro calavam-se sobre as pedras.

O mais jovem era o mais forte, teria ele que sustentar os demais. Pernas abertas e firmes, cravou-se no chão bem debaixo da janela dela. O segundo irmão subiu para os seus ombros, estendeu a mão e o terceiro subiu. O quarto escalou os outros até subir nos ombros do terceiro. E, um por cima do outro, foram se construindo como uma torre. Até que o último chegou ao topo.

O último chegou ao topo, e o topo não chegou à altura da janela da moça. De cima a baixo os irmãos passaram-se a palavra. Os onze parecem ondejar por um instante. Então o mais jovem e mais forte saiu de debaixo dos pés do seu irmão deixando-o suspenso no ar, e tomando a mão que este lhe estendeu subiu rapidamente por ele, galgando a mão que este lhe estendeu subiu rapidamente por ele, galgando seus irmãos um a um.

No alto, a janela se abriu.

Texto de Marina Colasanti. 23 histórias de um viajante. São Paulo: Global, 2005, p. 51-55.


Glossário

Ama: criada de dama nobre.

Ondejar: ondear, mover-se sinuosamente, formando ondas.

Saltimbancos: artista popular que se exibe em vias públicas ou feiras.

Velado: coberto com véu.


ATIVIDADES PARA ENTENDER O TEXTO


1. Qual é o assunto desse conto?

2. O narrador apresenta primeiro as reações do saltimbanco. Já as reações e o estado da moça são semelhantes aos do jovem. Que estado é esse?

3. Pelas informações contidas no texto, parece que as personagens já haviam se apaixonado antes? Justifique sua resposta.

4. O pai da moça não aceitou o amor dos jovens: não queria que a filha se casasse com um saltimbanco.

a) Que razões ele poderia ter para proibir esse casamento?

b) Nas histórias de amor, os amantes precisam vencer obstáculos para ficarem juntos. Que obstáculos a jovem e o saltimbanco enfrentaram?

5. No conto, o que tornou possível a solução adotada pelo irmão mais novo?

6. Nos contos de amor, as personagens em geral devem enfrentar e superar obstáculos para viver seu amor. Que tipo de obstáculos podem ser esses?

7. O conto lido tem elementos que o aproximam dos contos de fadas. Quais são eles?

8. O início do conto tem dados suficientes para o leitor construir uma imagem da moça e do saltimbanco. Como eles são caracterizados?

9. A caracterização das personagens sugere que a moça e o saltimbanco pertenciam a classes sociais diferentes.

a) Nos contos de amor, que tipo de obstáculo o leitor já imagina que os amantes enfrentarão quando pertencem a classes sociais distintas?

b) Se, em vez do saltimbanco, a moça tivesse se apaixonado por um jovem comerciante muito rico, que tipo de complicação o leitor poderia esperar encontrar?

10. Nem a ama nem os irmãos do rapaz se alegraram com aquele "amor que não podia ser". O que o leitor precisa saber para entender por que o amor era impossível?


CRÉDITOS

Tanto o texto como as atividades (algumas adaptadas) foram recortadas do livro didático que eu muito aprecio. Trata-se da coleção "Para viver juntos: português 9º ano, organizado pela editora SM, 2015, de autoria coletiva: Greta Marchetti, Heidi Strecker e Mirella L. Cleto.


MANUAL DO PROFESSOR

1. O amor proibido entre uma jovem dama e um saltimbanco.

2. A moça estava muito emocionada e sem apetite.

3. Pela incompreensão das personagens sobre seu sentimento, é bem provável que nunca antes haviam experimentado o amor.

4. a) Provavelmente ele queria que a filha se casasse com um homem rico, bem posicionado socialmente.

b) A proibição do pai da moça; o fato de a moça ser presa pelo pai em uma torre; o fato de a torre feita pelo saltimbanco e por seus irmãos não ter alcançado a janela da jovem.

5. O elemento mágico que permite que a torre humana se sustente.

6. Obstáculos externos: oposição da família ou da sociedade, distância, morte, guerras, exílio; obstáculos internos: medo do amor, timidez, insegurança etc.

7. A ama, a feira, os saltimbancos, o pai que tranca a filha no quarto mais alto da casa, o namorado que escala a torre onde a amada foi trancada.

8. A moça era protegida pelo pais, porém esperta o suficiente para levar a ama a tomar outra rua para ir à igreja; provavelmente era rica, pois tinha uma ama. O saltimbanco era o mais jovem, o mais forte e o mais valente dos onze irmãos; provavelmente era pobre.

9. a) A oposição da família e da sociedade.

b) O leitor poderia imaginar que a moça e o rico comerciante fossem de famílias rivais, ou que ela já tivesse prometida a outro homem.

10. O leitor deve saber que o casamento entre pessoas de grupos sociais diferentes sofre muita rejeição.





sábado, 13 de fevereiro de 2021

INTERPRETAÇÃO TEXTUAL - CONTO E EPOPEIA: O REI GILGAMESH

 O REI GILGAMESH

Fonte: https://www.thecollector.com/epic-of-gilgamesh/

Recontado por Ludmila Zeman (Tradução de Sérgio Capparelli)


Há muito tempo, nas terras da Mesopotâmia, um rei chamado Gilgamesh foi mandado pelo deus Sol para governar a cidade de Uruk.


Gilgamesh era parte deus e parte homem. Ele parecia humano, mas não sabia o que era ser humano. Ele tinha poder e riqueza, sem ser feliz. Tinha tudo, menos amigos. Vivia sempre sozinho. Por isso tornara-se amargo e cruel.


Um dia, ele decidiu mostrar quanto era forte e poderoso e fazer as pessoas se lembrarem dele para sempre.


Gilgamesh ordenou, então, que fosse construída uma grande muralha em volta da cidade. Mandou que os homens deixassem seus trabalhos e suas famílias para trabalharem na construção. Fez com que as mulheres trouxessem comida. As crianças foram afastadas para que ninguém perdesse tempo brincando com elas. No início, o povo ajudou de boa vontade. O rei deveria ter boas razões para querer a muralha. estaria algum inimigo planejando atacar a cidade?


A muralha ficava cada vez mais alta. E as pessoas, mais inquietas. Que tamanho deveria ter? Já estava mais alta do que qualquer muralha no mundo, mas assim mesmo Gilgamesh exigia que os trabalhos prosseguissem dia e noite. Os homens desmaiavam de fome e de cansaço. A comida ficava escassa. Todos imploravam misericórdia, suplicando que Gilgamesh parasse, mas ele não os escutava. No desespero, rezaram, pedindo que o deus Sol os ajudasse.


O deus Sol ouviu as preces e ordenou a criação de um outro homem tão forte quanto Gilgamesh. Seu nome era Enkidu. Ele foi feito de barro. Já que Gilgamesh nada tinha aprendido vivendo entre as pessoas, Enkidu foi enviado para viver com os animais da floresta. Logo que ele conheceu os animais, aprendeu a cuidar deles. Mas não conhecia a bondade humana porque nunca tinha visto outra pessoa.


Enkidu não gostou do primeiro homem que viu. Era um caçador perseguindo animais na floresta, para matá-los. Por que alguém faria isso? - perguntou-se Enkidu. Ele correu para ajudar seus amigos. Derrubou o caçador de seu carro e socorreu os animais machucados. O caçador voltou correndo para Uruk a fim de avisar Gilgamesh sobre o novo perigo da floresta. Ele chamou Enkidu de “o homem mais forte do mundo”.


Gilgamesh ficou furioso. ‘Não existe ninguém mais forte do que eu”, disse. “Tragam até mim essa criatura que eu vou provar o que estou falando. Vou destruí-la na frente de todo o povo de Uruk.” O caçador disse que não poderia capturar sozinho uma selvagem tão forte. “Então”, disse Gilgamesh, “vamos dar um jeito dele vir até aqui. Chamem a cantora Shamhat. deixem que ela o atraia para cá com seu charme e sua música.” 


Todo mundo dizia que a única pessoa em Uruk que não gostava de Shamhat era Gilgamesh, e isso era uma prova de que ele não gostava de ninguém. Ela era a mulher mais bonita da cidade e a mais refinada cantora do templo. Mas será que ela poderia acalmar aquele selvagem? O caçador não queria voltar à floresta para ser feito de bobo mais uma vez, mas ele não ousou discutir com Gilgamesh nem desobedecê-lo.


O caçador levou Shamhat até o lugar da floresta em que tinha visto Enkidu pela última vez. Deixou-a sozinha e fugiu de volta à cidade. Quando a noite caiu, Shahat tocou sua harpa e cantou na escuridão. Sua voz espalhou um feitiço pela floresta. Enkidu foi atrás do som e parou atrás de uma árvore. Ele nunca tinha visto algo tão encantador. Aproximou-se de Shamhat devagar, para não assustá-la.


Shamhat viu Enkidu e parou de cantar. Ele parecia mais uma fera do que um homem, mas ela sabia que ele não iria machucá-la. Nunca ninguém tinha olhado para ela com tanta ternura. Nos dias que se seguiram, Shamhat ensinou-o a falar e cantar, e apaixonou-se por ele. Eles exploraram os caminhos do amor, e Enkidu prometeu ficar com ela para sempre.


Shamhat tinha medo. Enkidu não devia se aproximar da cidade de Uruk, onde Gilgamesh o esperava, para destruí-lo. Mas Enkidu recusou-se a escutá-la. Ele não sentia medo. Lutaria até a morte por ela.


O mais triste para Enkidu foi deixar seus amigos animais. Eles reuniram-se para a despedida. Não conseguiam entender por que Enkidu os abandonava, e ele podia dar nenhuma explicação. Todo dia, da manhã até o anoitecer, Gilgamesh olhava da sua torre, no alto da grande muralha de Uruk, esperando a volta de Shamhat. Todos na cidade tinham ouvido falar sobre o selvagem que poderia vir da floresta e salvá-los do rei cruel. Gilgamesh sabia o que eles estavam pensando. Ele iria matar o estranho na frente de todos os habitantes de Uruk para que ninguém pensasse em desafiar seu governo.


Shamhat estava preocupada. Enkidu conseguiria vencer Gilgamesh? O que as pessoas pensariam daquela estranha criatura? Para que ele se parecesse mais com os outros homens, ela cortou o cabelo dele e rasgou um pedaço do seu vestido para cobri-lo. Mas Enkidu continuou usando a coroa de chifres em memória de seus amigos, os animais. Shamhat apontou para Uruk ao longe. Enkidu ficou impressionado. Nunca tinha imaginado quanto uma cidade poderia ser bonita.


Na manhã seguinte, o povo reuniu-se para ver Shamhat e Enkidu aproximando-se da porta da cidade. Gilgamesh tinha ordenado que o trabalho na muralha fosse suspenso durante esse dia, para que todo mundo pudesse assistir a sua vitória. Ele ficou em cima da muralha e gritou para Enkidu: ‘Eu sou o rei desta cidade e destas pessoas! Ninguém entra sem minha permissão! Desafio-te a vir aqui e lutar comigo!” Enkidu subiu na muralha. ‘Estou pronto!” - gritou em resposta.


Foi a luta mais assustadora que o povo de Uruk tinha visto. Lutaram durante horas. A terra tremeu, e um raio passou pelo céu, como se os próprios deuses estivessem lutando para controlar o mundo. Gilgamesh e Enkidu tinham forças iguais e nenhum dos dois estava ganhando. Então, de repente, Gilgamesh tropeçou numa pedra solta, perdeu o equilíbrio e caiu na beira da muralha.


Tudo aconteceu de maneira tão rápida que as pessoas não podiam acreditar no que viam. Para o espanto de todos, Enkidu debruçou-se sobre a muralha, pegou Gilgamesh pelo braço e puxou-o, até que estivesse em segurança. Por quê? Enkidu tinha vencido. Por que ele salvaria alguém que estava tentando matá-lo?


Gilgamesh voltou a ficar de pé em cima da muralha, encarando Enkidu. Todo mundo que os observava prendeu a respiração. Gilgamesh deu um passo na direção de Enkidu, parou, abriu os braços e o abraçou. O rei compreendeu finalmente o que era ser humano. Não estava mais sozinho. E tinha achado um amigo.


As festas duraram muitos dias.


Shamhat foi escolhida para conduzir o maior desfile que já acontecera em Uruk. Gilgamesh e Enkidu, agora irmãos, olhavam e acenavam do alto da grande muralha.


Gilgamesh ordenou que o trabalho na muralha fosse interrompido para sempre. Pais e mães ficaram juntos de novo e dançaram com seus filhos nas ruas. Gilgamesh convidou todo mundo para um grande banquete.


Uma nova paz reinou em Uruk. Em noites calmas, Shamhat gostava de navegar pelo rio com Enkidu e de ficar escutando os planos que ele fazia com Gilgamesh para tornar a cidade um lugar mais feliz. Então ela tocava sua harpa e cantava para eles, orgulhosa de tê-los feito ficar juntos. Como sua voz flutuava sobre as águas, as pessoas de Uruk paravam para escutar. E ficavam agradecidas.


ZEMAN, Ludmila. O rei Gilgamesh. trad. Sérgio Capparelli. Porto Alegre: Projeto, 1992.


Saiba mais sobre Ludmila Zeman.


INTERPRETAÇÃO DO TEXTO


1. Gilgamesh ordenou a construção de uma grande muralha em volta da cidade. Qual era o motivo da construção da muralha?


2. No início da construção da muralha, o povo ajudou de boa vontade, mas, no final, suplicava a Gilgamesh que parasse o trabalho. Por que o povo mudou de atitude?


3. Gilgamesh não atendeu às súplicas do povo para que a construção da muralha fosse interrompida. Responda:


a) Quem interferiu para buscar uma solução para o sofrimento do povo?


b) Que providência foi tomada?


4. Quais eram as semelhanças entre as personagens Gilgamesh e Enkidu?


5. O que aconteceu para despertar a ira de Gilgamesh contra Enkidu?


6. Que sentimentos Enkidu experimentou ao sair do lugar onde vivia e chegar à cidade?


7. Releia: “na manhã seguinte, o povo reuniu-se para ver Shamhat e Enkidu aproximando-se da porta da cidade.”


Responda:


a) Qual a reação de Gilgamesh ao ver Enkidu?


b) Onde ocorreu o enfrentamento entre os dois?


8. Depois da luta entre Gilgamesh e Enkidu, “o rei compreendeu finalmente o que era ser humano”. Reflita sobre o que significa ser “humano”, respondendo às questões:


a) Para o rei, o que era ser “humano”?


b) Para você, o que é ser “humano”?


c) O que, para o rei, passou a ser oposto de “humano”?


d) O que para você pode ser oposto de “humano”?


e) Na sua opinião, há no mundo muita gente que ainda não descobriu o que é ser “humano”? Justifique sua resposta.


9. Explique a grande mudança que ocorreu na relação entre governante e governados, no fim do conto.


10. “Uma nova paz reinou em Uruk.” Para descrever a “nova paz”, o narrador enumerou algumas ações e sentimentos. Confira:


- Shamhat navegava pelo rio;

- Gilgamesh e Enkidu faziam planos para tornar a cidade mais feliz;

- Shamhat tocava harpa e cantava;

- Shamhat sentia orgulho por ver os amigos juntos;

- O povo parava para ouvir a música de Shamhat e sentia gratidão.


Que paz você gostaria que fosse possível no mundo de hoje? Faça como o narrador: enumere algumas ações e sentimentos que caracterizam essa paz.


As atividades foram retiradas do seguinte material: BORGATTO, Ana; BERTIN, Terezinha; MARCHEZI, Vera. Tudo é linguagem: língua portuguesa. São Paulo: Ática, 2007. (Adaptado)




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GABARITO


1. Gilgamesh queria mostrar que era forte e poderoso e desejava que as pessoas se lembrassem dele para sempre.

2. Porque, para que o serviço não fosse interrompido, todos os homens trabalhavam dia e noite, como a comida foi se tornando escassa, eles desmaiavam de fome e cansaço.

3. a) O deus Sol.

b) O deus Sol criou Enkidu, um homem tão forte quanto Gilgamesh.

4. Ambos eram criações do deus Sol, ambos eram fortes e nenhum dos dois conhecia a bondade humana.

5. O caçador chamou Enkidu de “o homem mais forte do mundo”.

6. Enkidu sentiu tristeza por deixar seus amigos animais e encantamento com a cidade, pois nunca tinha imaginado quanto poderia ser bonita.

7. a) Desafiou-o para uma luta.

b) Em cima da muralha.

8. a) Era não estar sozinho, ter achado um amigo.

b) Resposta pessoal.

c) Estar sozinho, não ter amigos.

d) resposta pessoal.

e) Resposta pessoal.

9. No início o governante oprimia os governados e estes eram infelizes. No fim, o governante passa a colaborar com os governados e faz planos para tornar a cidade um lugar mais feliz.

10. Resposta pessoal.


domingo, 18 de agosto de 2013

LEITURA: CONTO A NOVA CALIFÓRNIA - LIMA BARRETO

Ninguém sabia donde viera aquele homem. O agente do Correio pudera apenas informar que acudia ao nome de Raimundo Flamel, pois assim era subscrita a correspondência que recebia. E era grande. Quase diariamente, o carteiro lá ia a um dos extremos da cidade, onde morava o desconhecido, sopesando um maço alentado de cartas vindas do mundo inteiro, grossas revistas em línguas arrevesadas, livros, pacotes...
Quando Fabrício, o pedreiro, voltou de um serviço em casa do novo habitante, todos na venda perguntaram-lhe que trabalho lhe tinha sido determinado.
— Vou fazer um forno, disse o preto, na sala de jantar.
Imaginem o espanto da pequena cidade de Tubiacanga, ao saber de tão extravagante construção: um forno na sala de jantar! E, pelos dias seguintes, Fabrício pôde contar que vira balões de vidros, facas sem corte, copos como os da farmácia — um rol de coisas esquisitas a se mostrarem pelas mesas e prateleiras como utensílios de uma bateria de cozinha em que o próprio diabo cozinhasse.
O alarme se fez na vila. Para uns, os mais adiantados, era um fabricante de moeda falsa; para outros, os crentes e simples, um tipo que tinha parte com o tinhoso.
Chico da Tirana, o carreiro, quando passava em frente da casa do homem misterioso, ao lado do carro a chiar, e olhava a chaminé da sala de jantar a fumegar, não deixava de persignar-se e rezar um "credo" em voz baixa; e, não fora a intervenção do farmacêutico, o subdelegado teria ido dar um cerco à casa daquele indivíduo suspeito, que inquietava a imaginação de toda uma população.
Tomando em consideração as informações de Fabrício, o boticário Bastos concluirá que o desconhecido devia ser um sábio, um grande químico, refugiado ali para mais sossegadamente levar avante os seus trabalhos científicos.
Homem formado e respeitado na cidade, vereador, médico também, porque o doutor Jerônimo não gostava de receitar e se fizera sócio da farmácia para mais em paz viver, a opinião de Bastos levou tranquilidade a todas as consciências e fez com que a população cercasse de uma silenciosa admiração a pessoa do grande químico, que viera habitar a cidade.
De tarde, se o viam a passear pela margem do Tubiacanga, sentando-se aqui e ali, olhando perdidamente as águas claras do riacho, cismando diante da penetrante melancolia do crespúsculo, todos se- descobriam e não era raro que às "boas noites" acrescentassem "doutor". E tocava muito o coração daquela gente a profunda simpatia com que ele tratava as crianças, a maneira pela qual as contemplava, parecendo apiedar-se de que elas tivessem nascido para sofrer e morrer.
Na verdade, era de ver-se, sob a doçura suave da tarde, a bondade de Messias com que ele afagava aquelas crianças pretas, tão lisas de pele e tão tristes de modos, mergulhadas no seu cativeiro moral, e também as brancas, de pele baça, gretada e áspera, vivendo amparadas na necessária caquexia dos trópicos.
Por vezes, vinha-lhe vontade de pensar qual a razão de ter Bernardin de Saint-Pierre gasto toda a sua ternura com Paulo e Virgínia e esquecer-se dos escravos que os cercavam...
Em poucos dias a admiração pelo sábio era quase geral, e não o era unicamente porque havia alguém que não tinha em grande conta os méritos do novo habitante.
Capitão Pelino, mestre-escola e redator da Gazeta de Tubiacanga, órgão local e filiado ao partido situacionista, embirrava com o sábio. "Vocês hão de ver, dizia ele, quem é esse tipo... Um caloteiro, um aventureiro ou talvez um ladrão fugido do Rio."
A sua opinião em nada se baseava, ou antes, baseava-se no seu oculto despeito vendo na terra um rival para a fama de sábio de que gozava. Não que Pelino fosse químico, longe disso; mas era sábio, era gramático. Ninguém escrevia em Tubiacanga que não levasse bordoada do Capitão Pelino, e mesmo quando se falava em algum homem notável lá no Rio, ele não deixava de dizer: "Não há dúvida! O homem tem talento, mas escreve: 'um outro', 'de resto'..." E contraía os lábios como se tivesse engolido alguma cousa amarga.
Toda a vila de Tubiacanga acostumou-se a respeitar o solene Pelino, que corrigia e emendava as maiores glórias nacionais. Um sábio...
Ao entardecer, depois de ler um pouco o Sotero, o Candido de Figueiredo ou o Castro Lopes, e de ter passado mais uma vez a tintura nos cabelos, o velho mestre-escola saía vagarosamente de casa, muito abotoado no seu paletó de brim mineiro, e encaminhava-se para a botica do Bastos a dar dous dedos de prosa. Conversar é um modo de dizer, porque era Pelino avaro de palavras, limitando-se tão-somente a ouvir. Quando, porém, dos lábios de alguém escapava a menor incorreção de linguagem, intervinha e emendava. "Eu asseguro, dizia o agente do Correio, que..." Por aí, o mestre-escola intervinha com mansuetude evangélica: "Não diga 'asseguro' Senhor Bernardes; em português é garanto."
E a conversa continuava depois da emenda, para ser de novo interrompida por uma outra. Por essas e outras, houve muitos palestradores que se afastaram, mas Pelino, indiferente, seguro dos seus deveres, continuava o seu apostolado de vernaculismo. A chegada do sábio veio distraí-lo um pouco da sua missão. Todo o seu esforço voltava-se agora para combater aquele rival, que surgia tão inopinadamente.
Foram vãs as suas palavras e a sua eloquência: não só Raimundo Flamel pagava em dia as suas contas, como era generoso—pai da pobreza—e o farmacêutico vira numa revista de específicos seu nome citado como químico de valor.
Havia já anos que o químico vivia em Tubiacanga, quando, uma bela manhã, Bastos o viu entrar pela botica adentro. O prazer do farmacêutico foi imenso. O sábio não se dignara até aí visitar fosse quem fosse e, certo dia, quando o sacristão Orestes ousou penetrar em sua casa, pedindo-lhe uma esmola para a futura festa de Nossa Senhora da Conceição, foi com visível enfado que ele o recebeu e atendeu.
Vendo-o, Bastos saiu de detrás do balcão, correu a recebê-lo com a mais perfeita demonstração de quem sabia com quem tratava e foi quase em uma exclamação que disse:
—Doutor, seja bem-vindo.
O sábio pareceu não se surpreender nem com a demonstração de respeito do farmacêutico, nem com o tratamento universitário. Docemente, olhou um instante a armação cheia de medicamentos e respondeu:
— Desejava falar-lhe em particular, Senhor Bastos.
O espanto do farmacêutico foi grande. Em que poderia ele ser útil ao homem, cujo nome corria mundo e de quem os jornais falavam com tão acendrado respeito? Seria dinheiro? Talvez... Um atraso no pagamento das rendas, quem sabe? E foi conduzindo o químico para o interior da casa, sob o olhar espantado do aprendiz que, por um momento, deixou a "mão" descansar no gral, onde macerava uma tisana qualquer.
Por fim, achou ao fundo, bem no fundo, o quartinho que lhe servia para exames médicos mais detidos ou para as pequenas operações, porque Bastos também operava. Sentaram-se e Flamel não tardou a expor:
— Como o senhor deve saber, dedico-me à química, tenho mesmo um nome respeitado no mundo sábio...
— Sei perfeitamente, doutor, mesmo tenho disso informado, aqui, aos meus amigos.
— Obrigado. Pois bem: fiz uma grande descoberta, extraordinária. . .
Envergonhado com o seu entusiasmo, o sábio fez uma pausa e depois continuou:
— Uma descoberta... Mas não me convém, por ora, comunicar ao mundo sábio, compreende?
— Perfeitamente.
— Por isso precisava de três pessoas conceituadas que fossem testemunhas de uma experiência dela e me dessem um atestado em forma, para resguardar a prioridade da minha invenção...
O senhor sabe: há acontecimentos imprevistos e...
— Certamente! Não há dúvida!
— Imagine o senhor que se trata de fazer ouro...
— Como? O quê? fez Bastos, arregalando os olhos.
— Sim! Ouro! disse, com firmeza, Flamel.
— Como?
— O senhor saberá, disse o químico secamente. A questão do momento são as pessoas que devem assistir à experiência, não acha?
— Com certeza, é preciso que os seus direitos fiquem resguardados, porquanto...
— Uma delas, interrompeu o sábio, é o senhor; as outras duas, o Senhor Bastos fará o favor de indicar-me.
O boticário esteve um instante a pensar, passando em revista os seus conhecimentos e, ao fim de uns três minutos, perguntou:
— O Coronel Bentes lhe serve? Conhece?
— Não. O senhor sabe que não me dou com ninguém aqui.
— Posso garantir-lhe que é homem sério, rico e muito discreto.
— E religioso? Faço-lhe esta pergunta, acrescentou Flamel logo, porque temos que lidar com ossos de defunto e só estes servem...
— Qual! E quase ateu...
— Bem! Aceito. E o outro?
Bastos voltou a pensar e dessa vez demorou-se um pouco mais consultando a sua memória...
Por fim, falou:
— Será o Tenente Carvalhais, o coletor, conhece?
— Como já lhe disse...
— E verdade. E homem de confiança, sério, mas...
— Que é que tem?
— E maçom.
— Melhor.
— E quando é?
— Domingo. Domingo, os três irão lá em casa assistir à experiência e espero que não me recusarão as suas firmas para autenticar a minha descoberta.
— Está tratado.
Domingo, conforme prometeram, as três pessoas respeitáveis de Tubiacanga foram à casa de Flamel, e, dias depois, misteriosamente, ele desaparecia sem deixar vestígios ou explicação para o seu desaparecimento.
Tubiacanga era uma pequena cidade de três ou quatro mil habitantes, muito pacífica, em cuja estação, de onde em onde, os expressos davam a honra de parar. Há cinco anos não se registrava nela um furto ou roubo. As portas e janelas só eram usadas... porque o Rio as usava.
O único crime notado em seu pobre cadastro fora um assassinato por ocasião das eleições municipais; mas, atendendo que o assassino era do partido do governo, e a vítima da oposição, o acontecimento em nada alterou os hábitos da cidade, continuando ela a exportar o seu café e a mirar as suas casas baixas e acanhadas nas escassas águas do pequeno rio que a batizara.
Mas, qual não foi a surpresa dos seus habitantes quando se veio a verificar nela um dos repugnantes crimes de que se tem memória! Não se tratava de um esquartejamento ou parricídio; não era o assassinato de uma família inteira ou um assalto à coletoria; era cousa pior, sacrílega aos olhos de todas as religiões e consciências: violavam-se as sepulturas do "Sossego", do seu cemitério, do seu campo-santo.
Em começo, o coveiro julgou que fossem cães, mas, revistando bem o muro, não encontrou senão pequenos buracos. Fechou-os; foi inútil. No dia seguinte, um jazigo perpétuo arrombado e os ossos saqueados; no outro, um carneiro e uma sepultura rasa. Era gente ou demônio. O coveiro não quis mais continuar as pesquisas por sua conta, foi ao subdelegado e a notícia espalhou-se pela cidade.
A indignação na cidade tomou todas as feições e todas as vontades. A religião da morte precede todas e certamente será a última a morrer nas consciências. Contra a prolanação, clamaram os seis presbiterianos do lugar—os bíblicos, como lhes chama o povo; clamava o Agrimensol Nicolau, antigo cadete, e positivista do rito Teixeira Mendes; clamava o Major Camanho, presidente da Loja Nova Esperança; clamavam o turco Miguel Abudala, negociante de armarinho, e o cético Belmiro, antigo estudante, que vivia ao deus-dará, bebericando parati nas tavernas. A própria filha do engenheiro residente da estrada de ferro, que vivia desdenhando aquele lugarejo, sem notar sequer os suspiros dos apaixonados locais, sempre esperando que o expresso trouxesse um príncipe a desposá-la —, a linda e desdenhosa Cora não pôde deixar de compartilhar da indignação e do horror que tal ato provocara em todos do lugarejo. Que tinha ela com o túmulo de antigos escravos e humildes roceiros? Em que podia interessar aos seus lindos olhos pardos o destino de tão humildes ossos? Porventura o furto deles perturbaria o seu sonho de fazer radiar a beleza de sua boca, dos seus olhos e do seu busto nas calçadas do Rio?
Decerto, não; mas era a Morte, a Morte implacável e onipotente, de que ela também se sentia escrava, e que não deixaria um dia de levar a sua linda caveirinha para a paz eterna do cemitério. Aí Cora queria os seus ossos sossegados, quietos e comodamente descansando num caixão bem feito e num túmulo seguro, depois de ter sido a sua carne encanto e prazer dos vermes...
O mais indignado, porém, era Pelino. O professor deitara artigo de fundo, imprecando, bramindo, gritando: "Na estória do crime, dizia ele, já bastante rica de fatos repugnantes, como sejam: o esquartejamento de Maria de Macedo, o estrangulamento dos irmãos Fuoco, não se registra um que o seja tanto como o saque às sepulturas do 'Sossego'. " E a vila vivia em sobressalto. Nas faces não se lia mais paz; os negócios estavam paralisados; os namoros suspensos. Dias e dias por sobre as casas pairavam nuvens negras e, à noite, todos ouviam ruídos, gemidos, barulhos sobrenaturais... Parecia que os mortos pediam vingança...
O saque, porém, continuava. Toda noite eram duas, três sepulturas abertas e esvaziadas de seu fúnebre conteúdo. Toda a população resolveu ir em massa guardar os ossos dos seus maiores. Foram cedo, mas, em breve, cedendo à fadiga e ao sono, retirou-se um, depois outro e, pela madrugada, já não havia nenhum vigilante. Ainda nesse dia o coveiro verificou que duas sepulturas tinham sido abertas e os ossos levados para destino misterioso.
Organizaram então uma guarda. Dez homens decididos juraram perante o subdelegado vigiar durante a noite a mansão dos mortos.
Nada houve de anormal na primeira noite, na segunda e na terceira; mas, na quarta, quando os vigias já se dispunham a cochilar, um deles julgou lobrigar um vulto esgueirando-se por entre a quadra dos carneiros. Correram e conseguiram apanhar dous dos vampiros. A raiva e a indignação, até aí sopitadas no animo deles, não se contiveram mais e deram tanta bordoada nos macabros ladrões, que os deixaram estendidos como mortos.
A notícia correu logo de casa em casa e, quando, de manhã, se tratou de estabelecer a identidade dos dous malfeitores, foi diante da população inteira que foram neles reconhecidos o Coletor Carvalhais e o Coronel Bentes, rico fazendeiro e presidente da Câmara. Este último ainda vivia e, a perguntas repetidas que lhe fizeram, pôde dizer que juntava os ossos para fazer ouro e 0 companheiro que fugira era 0 farmacêutico.
Houve espanto e houve esperanças. Como fazer ouro com ossos? Seria possível? Mas aquele homem rico, respeitado, como desceria ao papel de ladrão de mortos se a cousa não fosse verdade!
Se fosse possível fazer, se daqueles míseros despojos fúnebres se pudesse fazer alguns contos de réis, como não seria bom para todos eles!
O carteiro, cujo velho sonho era a formatura do filho, viu logo ali meios de consegui-la.
Castrioto, o escrivão do juiz de paz, que no ano passado conseguiu comprar uma casa, mas ainda não a pudera cercar, pensou no muro, que lhe devia proteger a horta e a criação. Pelos olhos do sitiante Marques, que andava desde anos atrapalhado para arranjar um pasto, pensou logo no prado verde do Costa, onde os seus bois engordariam e ganhariam forças...
Às necessidades de cada um, aqueles ossos que eram ouro viriam atender, satisfazer e felicitá-los; e aqueles dous ou três milhares de pessoas, homens, crianças, mulheres, moços e velhos, como se fossem uma só pessoa, correram à casa do farmacêutico.
A custo, o subdelegado pôde impedir que varejassem a botica e conseguir que ficassem na praça, à espera do homem que tinha o segredo de todo um Potosi. Ele não tardou a aparecer. Trepado a uma cadeira, tendo na mão uma pequena barra de ouro que reluzia ao forte sol da manhã, Bastos pediu graça, prometendo que ensinaria o segredo, se lhe poupassem a vida. "Queremos já sabê-lo," gritaram.
Ele então explicou que era preciso redigir a receita, indicar a marcha do processo, os reativos—trabalho longo que só poderia ser entregue impresso no dia seguinte. Houve um murmúrio, alguns chegaram a gritar, mas o subdelegado falou e responsabilizou-se pelo resultado.
Docilmente, com aquela doçura particular às multidões furiosas, cada qual se encaminhou para casa, tendo na cabeça um único pensamento: arranjar imediatamente a maior porção de ossos de defunto que pudesse.
O sucesso chegou à casa do engenheiro residente da estrada de ferro. Ao jantar, não se falou em outra cousa. O doutor concatenou o que ainda sabia do seu curso, e afirmou que era impossível. Isto era alquimia, cousa morta: ouro é ouro, corpo simples, e osso é osso, um composto, fosfato de cal.
Pensar que se podia fazer de uma cousa outra era "besteira". Cora aproveitou o caso para rir-se petropolimente da crueldade daqueles botocudos; mas sua mãe, Dona Emilia, tinha fé que a cousa era possível.
À noite, porém, o doutor percebendo que a mulher dormia, saltou a janela e correu em direitura ao cemitério; Cora, de pés nus, com as chinelas nas mãos, procurou a criada para irem juntas à colheita de ossos. Não a encontrou, foi sozinha; e Dona Emília, vendo-se só, adivinhou o passeio e lá foi também. E assim aconteceu na cidade inteira. O pai, sem dizer nada ao filho, saía; a mulher, julgando enganar o marido, saía; os filhos, as filhas, os criados — toda a população, sob a luz das estrelas assombradas, correu ao satânico rendez-vous no "Sossego". E ninguém faltou. O mais rico e o mais pobre lá estavam. Era o turco Miguel, era o professor Pelino, o doutor Jerônimo, o Major Camanho, Cora, a linda e deslumbrante Cora, com os seus lindos dedos de alabastro, revolvia a sânie das sepulturas, arrancava as carnes, ainda podres agarradas tenazmente aos ossos e deles enchia o seu regaço até ali inútil. Era o dote que colhia e as suas narinas, que se abriam em asas rosadas e quase transparentes, não sentiam o fétido dos tecidos apodrecidos em lama fedorenta...
A desinteligência não tardou a surgir; os mortos eram poucos e não bastavam para satisfazer a fome dos vivos. Houve facadas, tiros, cachações. Pelino esfaqueou o turco por causa de um fêmur e mesmo entre as famílias questões surgiram. Unicamente, o carteiro e o filho não brigaram. Andaram juntos e de acordo e houve uma vez que o pequeno, uma esperta criança de onze anos, até aconselhou ao pai: "Papai vamos aonde está mamãe; ela era tão gorda..."
De manhã, o cemitério tinha mais mortos do que aqueles que recebera em trinta anos de existência. Uma única pessoa lá não estivera, não matara nem profanara sepulturas: fora o bêbedo Belmiro.

Entrando numa venda, meio aberta, e nela não encontrando ninguém, enchera uma garrafa de parati e se deixara ficar a beber sentado na margem do Tubiacanga, vendo escorrer mansamente as suas águas sobre o áspero leito de granito — ambos, ele e o rio, indiferentes ao que já viram, mesmo à fuga do farmacêutico, com o seu Potosi e o seu segredo, sob o dossel eterno das estrelas.

LIMA BARRETO