COM CERTEZA TENHO AMOR
Um conto escrito por Marina Colasanti
Moça tão resguardada por seus pais não deveria ter ido à feira. Nem foi, embora muito o desejasse. Mas porque o desejava, convenceu a ama que a acompanhava a tomar uma rua em vez de outra para ir à igreja, e a rua que tomaram passava tão perto da feira que seus sons a percorriam como água e as cores todas da feira pareciam espelhar-se nas paredes claras. Foi dessa rua, olhando através do véu que lhe cobria metade do rosto, que a moça viu os saltimbancos em suas acrobacias.
E foi nessa rua, recortada como uma silhueta em suas roupas escuras, o rosto meio coberto por um véu, que o mais jovem dos saltimbancos, atrasado a caminho da feira, a viu.
Era o mais jovem, era o mais forte, era o mais valente entre os onze irmãos. A partir daquele encontro porém, uma fraqueza que não conhecia deslizou para dentro do seu peito. À noite suspirava como se doente.
- Que tens? - perguntaram-lhe os irmãos.
- Não sei - respondeu. E era verdade. Sabia apenas que a moça velada aparecia nos seus sonhos, e que parecia sonhar mesmo acordado porque mesmo acordado a tinha diante dos olhos.
Àquela rua a moça não voltou mais. Mas ele a procurou em todas as outras ruas da cidade até vê-la passar, esperou diante da igreja até vê-la entrar, acompanhou-a ao longe até vê-la chegar em casa.
Agora sorria, cantava, embora de repente largasse a comida no prato porque nada mais lhe passava na garganta.
- Que tens? - perguntaram-lhe os irmãos.
- Acho, não sei... - respondeu ele abaixando a cabeça sobre o seu rubor - creio... que tenho amor.
Na sua casa, a moça também sorria e cantava, largava de repente a comida no prato e se punha a chorar.
- Tenho... sim... com certeza tenho amor - respondeu à ama que lhe perguntou o que tinha.
Mas nem a ama se alegrou, nem se alegraram os dez irmãos. Pois como alegrar-se com um amor que não podia ser?
De fato, tanto riso tanto choro acabaram chamando a atenção do pai da moça que, vigilante e sem precisar perguntar, trancou-a no quarto mais alto da sua alta casa. Não era com um saltimbanco que havia de casar a filha criada com tanto esmero.
Mas era com o saltimbanco que ela queria se casar.
E o saltimbanco, ajudado por seus dez irmãos, começou a se preparar para chegar até ela.
Afinal uma noite, lua nenhuma que os denunciasse, encaminharam-se os onze para a casa da moça. Seus pés calçados de feltro calavam-se sobre as pedras.
O mais jovem era o mais forte, teria ele que sustentar os demais. Pernas abertas e firmes, cravou-se no chão bem debaixo da janela dela. O segundo irmão subiu para os seus ombros, estendeu a mão e o terceiro subiu. O quarto escalou os outros até subir nos ombros do terceiro. E, um por cima do outro, foram se construindo como uma torre. Até que o último chegou ao topo.
O último chegou ao topo, e o topo não chegou à altura da janela da moça. De cima a baixo os irmãos passaram-se a palavra. Os onze parecem ondejar por um instante. Então o mais jovem e mais forte saiu de debaixo dos pés do seu irmão deixando-o suspenso no ar, e tomando a mão que este lhe estendeu subiu rapidamente por ele, galgando a mão que este lhe estendeu subiu rapidamente por ele, galgando seus irmãos um a um.
No alto, a janela se abriu.
Texto de Marina Colasanti. 23 histórias de um viajante. São Paulo: Global, 2005, p. 51-55.
Glossário
Ama: criada de dama nobre.
Ondejar: ondear, mover-se sinuosamente, formando ondas.
Saltimbancos: artista popular que se exibe em vias públicas ou feiras.
Velado: coberto com véu.
ATIVIDADES PARA ENTENDER O TEXTO
1. Qual é o assunto desse conto?
2. O narrador apresenta primeiro as reações do saltimbanco. Já as reações e o estado da moça são semelhantes aos do jovem. Que estado é esse?
3. Pelas informações contidas no texto, parece que as personagens já haviam se apaixonado antes? Justifique sua resposta.
4. O pai da moça não aceitou o amor dos jovens: não queria que a filha se casasse com um saltimbanco.
a) Que razões ele poderia ter para proibir esse casamento?
b) Nas histórias de amor, os amantes precisam vencer obstáculos para ficarem juntos. Que obstáculos a jovem e o saltimbanco enfrentaram?
5. No conto, o que tornou possível a solução adotada pelo irmão mais novo?
6. Nos contos de amor, as personagens em geral devem enfrentar e superar obstáculos para viver seu amor. Que tipo de obstáculos podem ser esses?
7. O conto lido tem elementos que o aproximam dos contos de fadas. Quais são eles?
8. O início do conto tem dados suficientes para o leitor construir uma imagem da moça e do saltimbanco. Como eles são caracterizados?
9. A caracterização das personagens sugere que a moça e o saltimbanco pertenciam a classes sociais diferentes.
a) Nos contos de amor, que tipo de obstáculo o leitor já imagina que os amantes enfrentarão quando pertencem a classes sociais distintas?
b) Se, em vez do saltimbanco, a moça tivesse se apaixonado por um jovem comerciante muito rico, que tipo de complicação o leitor poderia esperar encontrar?
10. Nem a ama nem os irmãos do rapaz se alegraram com aquele "amor que não podia ser". O que o leitor precisa saber para entender por que o amor era impossível?
CRÉDITOS
Tanto o texto como as atividades (algumas adaptadas) foram recortadas do livro didático que eu muito aprecio. Trata-se da coleção "Para viver juntos: português 9º ano, organizado pela editora SM, 2015, de autoria coletiva: Greta Marchetti, Heidi Strecker e Mirella L. Cleto.
MANUAL DO PROFESSOR
1. O amor proibido entre uma jovem dama e um saltimbanco.
2. A moça estava muito emocionada e sem apetite.
3. Pela incompreensão das personagens sobre seu sentimento, é bem provável que nunca antes haviam experimentado o amor.
4. a) Provavelmente ele queria que a filha se casasse com um homem rico, bem posicionado socialmente.
b) A proibição do pai da moça; o fato de a moça ser presa pelo pai em uma torre; o fato de a torre feita pelo saltimbanco e por seus irmãos não ter alcançado a janela da jovem.
5. O elemento mágico que permite que a torre humana se sustente.
6. Obstáculos externos: oposição da família ou da sociedade, distância, morte, guerras, exílio; obstáculos internos: medo do amor, timidez, insegurança etc.
7. A ama, a feira, os saltimbancos, o pai que tranca a filha no quarto mais alto da casa, o namorado que escala a torre onde a amada foi trancada.
8. A moça era protegida pelo pais, porém esperta o suficiente para levar a ama a tomar outra rua para ir à igreja; provavelmente era rica, pois tinha uma ama. O saltimbanco era o mais jovem, o mais forte e o mais valente dos onze irmãos; provavelmente era pobre.
9. a) A oposição da família e da sociedade.
b) O leitor poderia imaginar que a moça e o rico comerciante fossem de famílias rivais, ou que ela já tivesse prometida a outro homem.
10. O leitor deve saber que o casamento entre pessoas de grupos sociais diferentes sofre muita rejeição.
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