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sábado, 11 de janeiro de 2025

CRÔNICA OS TATUADORES - AUTORIA JOÃO DO RIO - ATIVIDADES DE LITERATURA PARA O ENSINO MÉDIO COM GABARITO



O livro A alma encantadora das ruas reúne crônicas de João do Rio, pseudônimo de um jornalista do início do século XX. Publicadas em jornais e revistas da época, essas crônicas revelam aspectos curiosos da cidade do Rio de Janeiro, então capital federal. Vamos ler um trecho de uma delas.





OS TATUADORES
João do Rio

- Quer marcar?
Era um petiz de doze anos talvez. A roupa em frangalhos, os pés nus, as mãos pouco limpas e um certo ar de dignidade na pergunta. O interlocutor, um rapazola loiro, com uma doirada carne de adolescente, sentado a uma porta, indagou:
- Por quanto?
- É conforme - continuou o petiz. - É inicial ou coroa?
- É um coração!
- Com nome dentro?
O rapaz hesitou. Depois:
- Sim, com nome: Maria Josefina.
- Fica tudo por uns seis mil-réis.
Houve um momento em que se discutiu o preço, e o petiz estava inflexível, quando vindo do quiosque da esquina um outro se acercou:
- Ó moço, faço eu; não escute embromações!
- Pagarás o que quiser, moço.
O rapazola sorria. Afinal resignou-se, arregaçou a manga da camisa de meia, pondo em relevo a musculatura do braço. O petiz tirou do bolso três agulhas amarradas, um pé de cálix com fuligem e começou o trabalho. Era na rua Clapp, perto do cais, no século XX... A tatuagem! Será então verdade a frase de Gautier: "O mais bruto do homem sente que o ornamento traça uma linha indelével de separação entre ele e o animal, e quando não pode enfeitar as próprias roupas recama a pele"?

A palavra tatuagem é relativamente recente. Toda a gente sabe que foi o navegador Cook que a introduziu no Ocidente, e esse escrevia tattou, termo da Polinésia de Tatou ou tu tahou, "desenho". Muitos dizem mesmo que a palavra surgiu no ruído perceptível da agulha na pele: tac, tac. Mas como ela é antiga! O primeiro homem, decerto, ao perceber o pelo, descobriu a tatuagem. [...]
Os tatuadores têm várias maneiras de tatuar: por picadas, por incisão, por queimadura subepidérmica. As conhecidas entre nós são as incisivas, nos negros que trouxeram a tradição da África e, principalmente, as por picadas que se fazem com três agulhas amarradas e embebidas em graxa, tinta, anil ou fuligem, pólvora, acompanhando o desenho prévio. O marcador trabalha como as senhoras bordam.
Lombroso diz que a religião, a imitação, o ócio, a vontade, o espírito de corpo ou de seita, as paixões nobres, as paixões eróticas e o atavismo são as causas matenedoras dessa usança. Há uma outra - a sugestão do ambiente. Hoje toda a classe baixa da cidade é tatuada - tatuam-se marinheiros, em alguns corpos há o romance imageográfico de inversões dramáticas; tatuam-se soldados, vagabundos, criminosos, barregãs, mas também portugueses chegados da aldeia com a pele sem mancha, que a influência do meio obriga a incrustar no braço coroas de seu país.
Andei com Madruga três longos meses pelos mais primitivos, entre os atrasados morais, e nesses atrasados a camada que trabalha braçalmente, os carroceiros, os carregadores, os filhos dos carroceiros, deixaram-se tatuar porque era bonito, e são no fundo incapazes de ir parar na cadeia por qualquer crime. A outra, a perdida, a maior, o oceano da malandragem e da prostituição é que me proporcionou o ensejo de estudar ao ar livre o que se pode estudar na abafada atmosfera das prisões. A tatuagem tem nesse meio a significação do amor, do desprezo, do amuleto, da posse, do preservativo, das ideias patrióticas do indíviduo, da sua qualidade primordial.
Quase todos os rufiões e os rufistas do Rio têm na mão direita, entre o polegar e o indicador, cinco sinais que significam as chagas. Não há nenhum que não acredite derrubar o adversário dando-lhe uma bofetada com a mão assim marcada. O marinheiro Joaquim tem um Senhor crucificado no peito e uma cruz negra nas costas. Mandou fazer esse símbolo por esperteza. Quando sofre castigos, os guardiões sentem-se apavorados e sem coragem de sová-los.
- Parece que estão dando em Jesus!
A sereia dá lábia, a cobra atração, o peixe significa ligeireza n'água, a âncora e a estrela o homem do mar, as armas da República ou da Monarquia a sua compreensão política. Pelo número de coroas da Monarquia que eu vi, quase todo pessoal é monarquista.
Os lugares preferidos são as costas, as pernas, as coxas, os braços, as mãos. Nos braços estão em geral os nomes das amantes, frases inteiras, como exemplo esta frase de um soldado de um regimento de cavalaria: "Viva o Marechal de Ferro", desenhos sensuais, corações. O tronco é guardado para as coisas importantes, de saudade, de luxúria ou de religião. Hei de lembrar sempre o Madruga tatuando um funileiro, desejoso de lhe deixar uma estrela no peito.
- No peito, não! - cuspiu o mulato - no peito eu quero Nossa Senhora!
A sociedade, obedecendo à corrente das modernas ideias criminalistas, olha com desconfiança a tauagem. O curioso é que - e esses estranhos problemas de psicologia talvez não sejam nunca explicados - o curioso é que os que se deixam tatuar por não terem mais que fazer, em geral, o elemento puro das aldeias portuguesas, o único quase incontável da baixa classe do Rio, mostram sem o menor receio os braços enquanto os criminosos, os assassinos, os que já deixaram a ficha no gabinete de antropometria, fazem o possível para ocultá-los e escondem os desenhos do corpo como crime. Por que? Receio de que sejam os sinais por onde se faça o seu reconhecimento? Isso com os da polícia talvez. Mas mesmo com pessoas cujos intentos conhecem, o receio persiste, porque decerto eles consideram aquilo a marca de fogo da sociedade, de cuja tentação foram incapazes de fugir, levados pela inexorável fatalidade.
Há tatuagens religiosas, de amor, de nome, de vingança, de desprezo, de profissão, de beleza, de raça, e tatuagens obscenas.
A vida no seu feroz egoísmo é o que mais nitidamente ideografa a tatuagem.
As meretrizes e os criminosos nesse meio de becos e de facadas têm indeléveis ideias de perversidade e de amor. Um corpo desses, nu, é um estudo social. As mulheres mandam marcar corações com o nome dos amantes, brigam, desmancham a tatuagem pelo processo do Madruga, e marcam o mesmo nome no pé, no calcanhar.
- Olha, não venhas com presepadas, meu macacuano. Tenho-te aqui, desgraça!
- E mostram ao malandro, batendo com o chinelo, o seu nome odiado.
É a maior das ofensas: seu nome no calcanhar, roçando a poeira, amassado por todo o peso da mulher... [...]

RIO, João. A alma encantada das ruas. Org. de Raul Antelo. São Paulo, Companhia das Letras, 1997. p. 100-111.

Vocabulário
petiz: criança, garoto.
indelével: indestrutível; que não se pode apagar.
recamar: cobrir, revestir, adornar, enfeitar.
atavismo: reaparecimento, em um descendente, de um caráter não presente em seus ascendentes imediatos, mas sim em remotos.
barregã: concubina, mulher que vive amasiada com um homem.
rufião: indivíduo que se mete em brigas por causa de mulheres de má reputação; indivíduo brigão.
rufista: brigão.
antropometria: processo ou técnica de mensuração do corpo humano ou de suas várias partes.
presepada: farsa.
macacuano: natural de Cachoeira de Macacu (RJ).

 

ATIVIDADES

01: Em "Os Tatuadores", João do Rio apresenta a tatuagem como um fenômeno social complexo, carregado de significados e simbolismos. Analise como a prática da tatuagem, descrita pelo autor, reflete a identidade, os valores e as experiências de diferentes grupos sociais da época. Explore os significados atribuídos às tatuagens por marinheiros, criminosos, prostitutas e pessoas comuns, e como esses significados se relacionam com seus contextos sociais e históricos.

02: João do Rio, como cronista, adota um olhar particular sobre a realidade social que retrata. Analise como o autor, através de sua descrição da prática da tatuagem, constrói uma imagem da marginalidade e da criminalidade no Rio de Janeiro da época. Discuta o papel da linguagem e das descrições sensoriais na construção dessa imagem, e como o olhar do cronista se posiciona em relação aos personagens retratados.

03: A tatuagem, em "Os Tatuadores", pode ser interpretada como uma forma de resistência e afirmação de identidade, especialmente para grupos marginalizados. Analise como a prática da tatuagem se torna um ato de resistência contra a ordem social estabelecida, e como ela permite que os indivíduos expressem sua individualidade e pertencimento a grupos específicos. Discuta também a relação entre a tatuagem e a noção de corpo como território e como espaço de inscrição de identidades.







GABARITO

01: Espera-se que o aluno faça uma reflexão e levante as seguintes hipóteses: Em "Os Tatuadores", João do Rio nos apresenta um panorama rico e complexo da prática da tatuagem no Rio de Janeiro do início do século XX. Através das descrições minuciosas e da análise dos diferentes grupos sociais que se tatuavam, o autor revela a tatuagem como um fenômeno que transcende a mera ornamentação corporal, tornando-se um verdadeiro reflexo da identidade, dos valores e das experiências de cada indivíduo. Para os marinheiros, a tatuagem era uma espécie de amuleto, um símbolo de proteção nas longas viagens e uma forma de marcar a passagem pelo mar. A âncora, a estrela e o peixe eram desenhos comuns, representando a esperança, a orientação e a liberdade. Entre os criminosos, a tatuagem era uma forma de demarcar o território, de mostrar a quem pertenciam. As cruzes, os nomes de gangues e os símbolos religiosos deturpados eram frequentes, expressando tanto fé quanto desafio à ordem estabelecida. Para as prostitutas, a tatuagem era uma forma de sedução, de chamar a atenção e de marcar o corpo com os nomes de seus amantes. Os corações, as flores e os nomes eram os desenhos mais comuns, revelando um lado mais sentimental e, ao mesmo tempo, mais sofrido dessas mulheres. Entre as pessoas comuns, a tatuagem era muitas vezes uma forma de imitação, de seguir a moda ou de marcar um acontecimento importante. Os nomes de familiares, as datas de nascimento e os símbolos religiosos eram os mais populares.

02: Espera-se que o aluno faça uma reflexão e levante as seguintes hipóteses: Em "Os Tatuadores", João do Rio nos oferece um olhar singular sobre a marginalidade e a criminalidade no Rio de Janeiro do início do século XX. Através da análise da prática da tatuagem, o autor revela a complexidade desses grupos sociais, suas lutas, seus desejos e suas contradições. A linguagem rica e as descrições sensoriais do autor nos transportam para esse universo, permitindo-nos compreender melhor a sociedade carioca daquela época.

03: Espera-se que o aluno faça a seguinte reflexão: Em "Os Tatuadores", João do Rio nos apresenta a tatuagem não apenas como um adorno corporal, mas como um ato político e social. Ao marcar o corpo de forma permanente, os indivíduos tatuados desafiavam os padrões de beleza e comportamento estabelecidos pela sociedade, especialmente aqueles considerados marginais. A tatuagem, nesse contexto, funcionava como uma espécie de bandeira, um símbolo de resistência contra a ordem social estabelecida.


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