A natureza da linguagem literária
Você já deve ter tido contato com muitos tipos de texto literário: contos, poemas, romances, peças de teatro, novelas, crônicas etc. E também com textos não literários, como notícias, cartas comerciais, receitas culinárias, manuais de instrução. Mas, afinal, o que é um texto literário? O que distingue um texto literário de um texto não literário?
O escrittor gaúcho Moacyr Scliar escreveu, durante anos, no jornal Folha de S. Paulo, crônicas inspiradas nos acontecimentos cotidianos divulgados pelo jornal.
Você vai ler, a seguir, a última crônica que o escritor publicou nesse jornal antes de sua morte. E vai ler também a notícia na qual ele se inspirou para escrever a crônica.
TEXTO I
Cientistas americanos estudam o caso de uma mulher portadora de uma rara condição, em resultado da qual ela não tem medo de nada.
(Folha de S. Paulo, 17/12/2010. Cotidiano)
TEXTO II
Ele não sabia o que esperava quando, levado mais pela curiosidade do que pela paixão, começou a namorar a mulher sem medo. Na verdade havia aí também um elemento interesseiro; tinha um projeto secreto, que era o de escrever um livro chamado "A Vida com a Mulher sem Medo", uma obra que, imaginava, poderia fazer enorme sucesso, trazendo-lhe fama e fortuna.
Mas ele não tinha a menor ideia do que viria a acontecer.
Dominador, o homem queria ser o rei da casa. Suas ordens deveriam ser rigorosamente obedecidas pela mulher. Mas como impor sua vontade? Como muitos ele recorria a ameaças: quero o café servido às nove horas da manhã, senão... E aí vinham as advertências: senão eu grito com você, senão eu bato em você, senão eu deixo você sem comida.
Acontece que a mulher simplesmente não tomava conhecimento disso; ao contrário, ria às gargalhadas. Não temia gritos, não temia tapas, não temia qualquer tipo de castigo. E até dizia, gentil: "Bem que eu queria ficar assustada com suas ameaças, como prova de consideração e de afeto, mas você vê, não consigo".
Aquilo, além de humilhá-lo profundamente, deixava-o completamente perturbado. Meter medo na mulher transformou-se para ele em questão de honra. Tinha de vê-la pálida, trêmula, gritando por socorro.
Como fazê-lo? Pensou muito a respeito e chegou a uma conclusão: para amedrontá-la só barata ou rato. Resolveu optar pela barata, por uma questão de facilidade: perto de onde moravam havia um velho depósito abandonado, cheio de baratas. foi até lá e conseguiu quatro exemplares, que guardou num vidro de boca larga.
Voltou para casa e ficou esperando que a mulher chegasse, quando então soltaria as baratas. Já antegozava a cena: ela sem dúvida subiria numa cadeira, gritando histericamente. E ele enfim se sentiria o vencedor.
Foi neste momento que o rato apareceu. Coisa surpreendente, porque ali não havia ratos, sobretudo um roedor como aquele, enorme, ameaçador; o Rei dos Ratos. Quando a mulher finalmente retornou encontrou-o de pé sobre uma cadeira, agarrado ao vidro com as baratas, gritando histericamente.
Fazendo jus à fama ela não demonstrou o menor temor; ao contrário, ria às gargalhadas. Foi buscar uma vassoura, caçou o rato pela sala, conseguiu encurralá-lo e liquidou-o sem maiores problemas. Feito que ajudou o homem, ainda trêmulo, a descer da cadeira. E aí viu que ele segurava o vidro com as quatro baratas. O que deixou-a assombrada: o que pretendia ele fazer com os pobres insetos? Ou aquilo era um novo tipo de perversão?
Àquela altura ele já nem sabia o que dizer. Confessar que se tratava do derradeiro truque para assustá-la seria um vexame, mesmo porque, como ele agora o constatava, ela não tinha medo de baratas, assim como não tivera medo do rato. O jeito era aceitar a situação. E admitir que viver com uma mulher sem medo era uma coisa no mínimo amedrontadora.
(Moacyr Scliar. Folha de S. Paulo, 17/01/2011)
ATIVIDADES
1. O texto I é parte de uma notícia internacional.
a) Por que esse fato noticiado mereceu destaque no noticiário?
b) A que campo do conhecimento humano esse fato causa interesse?
2. O texto II foi criado pelo escritor Moacyr Scliar a partir da notícia reproduzida no texto I.
a) Qual dos dois textos trata de um fato concreto da realidade?
b) Qual deles cria uma história ficcional a partir de dados da realidade?
3. O texto II, sendo uma crônica, apresenta vários componentes comuns a outros gêneros narrativos, como fatos, personagens, tempo, espaço e narrador. Além disso, apresenta também preocupação quanto ao modo como os fatos são narrados.
a) O que a narrativa revela quanto a características psicológicas do marido ao longo da história?
b) Que dados da história comprovam sua resposta?
4. Observe estes fragmentos do texto:
"Aquilo, além de humilhá-lo profundamente, deixava-o completamente perturbado."
"E ele enfim se sentiria o vencedor."
Com base nesses fragmentos, conclua: como o homem encarava a característica da mulher de não sentir medo?
5. Em sua última tentativa de amedrontar a mulher, o homem pensa em baratas e ratos.
a) Por que ele imaginou que esses seres poderiam amedrontá-la?
b) O que o resultado dessa experiência mostrou quanto a quem tinha medo desses seres?
6. Você observou que os dois textos abordam o mesmo tema. Apesar disso, eles são bastante diferentes. Essas diferenças se devem à finalidade e ao gênero de cada um dos textos, bem como ao público a que cada um deles se destina.
a) Qual é a finalidade principal do texto I, considerando-se que se trata de uma reportagem jornalística?
b) Qual é a finalidade principal do texto II, considerando-se que se trata de uma crônica literária?
7. A fim de sintetizar as diferenças entre os dois textos, compare-os e responda:
a) Qual deles apresenta uma linguagem objetiva, utilitária, voltada para explicar um problema da realidade?
b) Em qual deles a linguagem é propositalmente organizada com o fim de criar expectativa ou envolvimento do leitor?
c) Qual deles tem a finalidade de informar o leitor sobre a realidade?
d) Qual deles tem a finalidade de entreter, divertir ou provocar reflexões no leitor a partir de um tema da realidade?
e) Considerando as reflexões que você fez sobre a linguagem dos textos em estudo, responda: qual deles é um texto literário? Por quê?
GABARITO
1. a) Por ainda não se conhecer alguém que não tivesse algum tipo de medo.
b) Ao campo científico.
2. a) O texto I.
b) O texto II.
3. a) Revela que ele era um homem curioso, dominador, competitivo.
b) O fato de ele se casar com a mulher por curiosidade, e não por amor; pelas tentativas constantes de dominá-la; pela relação competitiva que estabeleceu com a mulher.
4. Encarava como um desafio pessoal, como uma limitação dele, e não como uma característica dela.
5. a) Porque boa parte das pessoas, principalmente mulheres tem medo de baratas e ratos.
b) Os fatos mostraram que ele é quem tinha medo de ratos e baratas, e não ela.
6. a) Informar o leitor sobre um acontecimento raro.
b) Entreter o leitor, diverti-lo, além de provocar algumas reflexões sobre a natureza humana.
7. a) O texto I.
b) O texto II.
c) O texto I.
d) O texto II.
e) O texto II, por ser um texto que recria ficcionalmente a realidade; por ter uma linguagem propositalmente organizada com o fim de criar mais de um sentido; e por entreter e divertir o leitor, além de provocar reflexões sobre a vida e o mundo.
FONTE: CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português linguagens. 1 ano. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.